quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Primeiro Samuel

1
1-28
É um momento importante da história na história de Israel: o povo vai passar do sistema tribal para o sistema tributário. A mudança é de grandes proporções: a religião que sustentava a participação política e divisão igualitária dos bens, agora servirá para cimentar uma ideologia de Estado, onde a economia e a política ficarão concentradas em mãos de um poder central. A história de Samuel é a abertura dessa nova fase, que será o grande desafio para o povo.
Como em outros casos (Isaac, Sansão e João Batista), o nascimento de Samuel é apresentado de forma milagrosa. Da mulher estéril e humilhada (figura do povo) nasce, por graça de Javé, aquele que será o símbolo da fidelidade a Javé dentro do novo sistema.
2
1-10
Este cântico nasceu em data posterior e, provavelmente, celebra uma vitória do rei sobre os inimigos (v. 10). Certamente foi colocado aqui para expressar a esperança do povo de que o novo regime significasse de fato uma salvação: a função do rei é tornar visível a própria ação de Javé, que liberta dos inimigos (v. 1) e instaura o reino da justiça (vv. 3-9). Para isso, espera-se que desapareçam as desigualdades, e todos possam usufruir da liberdade e da vida. Lucas seguiu de perto este cântico, para compor o de Maria (cf. Lc 1,46-56 e nota).
11-36
O texto procura explicar  por que o sumo sacerdote, no tempo de Salomão, passou de Abiatar, descendente de eli, para Sadoc (cf. 1Rs 2,27.35). Ao mesmo tempo, procura justificar a destruição dos levitas de seus diversos santuários locais, quando se centralizou o culto em Jerusalém, no fim do séc. VII (cf. 2Rs 23,9). O autor se serve da profecia, como estilo literário, para justificar a política centralizadora do rei Salomão e do rei Josias. Isso nos mostra  que os poderosos, em todos os tempos e lugares, usam frequentemente a religião para explicar e justificar as próprias atitudes. Por outro lado, o texto sugere que, nessa época, o sistema das tribos já começa a se corromper.
3,1 – 4,1
Narrando a vocação de Samuel, a Bíblia inicia a grande lista dos profetas, cuja função é serem porta-vozes de Deus: ele anunciam claramente o que Deus está realizando ou vai realizar dentro da história. Neste relato a função profética aparece em Israel antes de surgir e formar o Estado com autoridade política central. A Bíblia quer mostrar que o profeta é aquele que mantém viva a consciência crítica de um povo: ele deve impedir que as autoridades políticvas se absolutizem e oprimam o povo.
O texto faz pensar na vocação de cada pessoa. Deus chama cada um de nós para exercer uma função dentro do projeto de Deus. Projeto esse voltado para a liberdade e a vida. Cada pessoa é um modo de Deus dizer a palavra que constrói a sociedade e a história. É preciso que cada um  aprenda distinguir a voz de Deus, sem confundi-la com a voz daqueles produzem e matem uma estrutura de sociedade voltada para a escravidão e a morte.
4
1-22
O esforço das tribos, no sentido de construir um sistema igualitário contra o sistema das cidades-estado cananéias,  já começava a se corromper (cf. 2,11-36 e nota) e ficou ainda mais comprometido com o avanço dos filisteus.Estes possuíam o domínio do ferro e lutavam com armas muito mais poderosas. A arca era uma espécie de sacramento da presença de Javé, que apoiava a luta das tribos por um sistema novo. Ela foi tomada pelos filisteus, e esse fato mostra, por um lado, o projeto de Javé já estava sendo corrompido pelos israelitas; por outro lado, indica que o sistema das tribos não era suficiente para conter o avanço de um forte inimigo externo.
5
1-12
 Os filisteus tentam assimilar Javé junto com o Deus deles. Mas o Deus vivo se torna, para os idólatras, um Deus de morte: ele não só destrói os ídolos, mas também castiga quem os adora.
6, 1-7,1
A volta da arca lembra a saída de Israel do Egito (cf. v. 6). O fato de as vacas não voltarem para seus bezerros mostra que foi Javé quem castigou os filisteus. Os vv. 19-20 sugerem que, embora próximo e íntimo do povo, Javé deve, ao mesmo tempo, ser temido e respeitado.
7
2-17
Termina o tempo dos juízes e, praticamente, encerra-se também o período em que Israel procurou organizar-se no sistema de tribos. A figura de Samuel é apresentada como o ideal de uma autoridade voltada para a libertação do povo. O autor certamente pretendeu fazer uma crítica antecipada do sistema monárquico, que vai começar logo a seguir.
8-12
Encontramos aqui duas versões diferentes sobre o aparecimento da monarquia em Israel. A primeira é formada por 1Sm 8; 10,17-27. Apresenta uma visão desfavorável à monarquia, mostrando-a como algo ambíguo e perigoso. A segunda versão está em 1Sm 9,1-10,16;11. É favorável, mostrando a monarquia como Dom de Deus para libertar o povo. Conservando as duas versões, a Bíblia sugere que toda autoridade é, no mínimo, ambígua: pode ser instrumento de Deus a serviço da libertação do povo; mas quando se absolutiza, tentando ocupar o lugar de Deus, ela passa a explorar e oprimir o povo, tornando-se assim má e ilegítima.
8
1-22
Começa aqui a versão desfavorável à criação de um poder político central. O povo se sente inseguro, vê a corrupção, e pede um novo regime. O grande risco desse novo regime será o de abandonar o projeto de Javé, para repetir exatamente o regime dos cananeus, que as tribos até agora tinham combatido. Samuel deixa tudo bem claro, ao mostrar "o direito do rei": em poucas palavras, o rei e sua corte formarão uma classe que viverá à custa da exploração e opressão sobre o povo. A resposta do povo (v. 20) mostra que, por trás do desejo de segurança, há um grande desconhecimento do que significa viver "como as outras nações". Preferir um poder centralizado - para o qual o povo delega todas as decisões - em vez de um poder participado, é o caminho inevitável para a escravidão. O texto faz pensar nas sérias consequências de escolher um regime político e votar em governantes. Até que ponto essas autoridades vão representar os interesses do povo e servi ao bem comum? Esta versão continua em 10,17-27.
9,1-10,16
É o começo da segunda narrativa, favorável à criação de um poder político central. Neste relato, a iniciativa é de Javé. Samuel unge secretamente Saul como rei, e os sinais que seguem apresentam Saul como alguém escolhido por Javé. Aqui a instituição do poder central é vista como dom de Javé. A continuação do relato está em 1Sm 11.
10
17-27
Temos aqui a continuação da primeira versão, desfavorável ao poder político central, iniciada em 1Sm 8,1-22. Fica bem claro o contraste entre o regime tribal, inspirado por Javé, e o regime monárquico, que rejeita Javé. A eleição do rei é feita através de sorteio público. O v. 27 já mostra um início de descontentamento.
11
1-15
Continua aqui a segunda versão sobre o surgimento do poder central, iniciada em 1Sm 9,1-10,16. O sinal anunciado em 10, 1.7 realiza-se agora: a liderança de Saul na libertação do povo é um sinal de que ele foi  escolhido por Deus. Dessa forma, a realeza aparece como continuação da era dos juízes e não como ruptura. Talvez seja esse o relato mais antigo sobre o surgimento da monarquia.
12
1-25
É a passagem difícil para o sistema tributário, dirigido por um regime monárquico. O discurso de Samuel apresenta uma avaliação do que significou a autoridade dentro do regime tribal: o povo não foi explorado,  e nem oprimido.A previsão sobre o regime monárquico, ao contrário, é sombria: será que o novo regime vai significar realmente um passo à frente em direção a uma sociedade justa e igualitária? Samuel parece ter suas dúvidas (cf. 1Sm 8, 10-22), que mais tarde serão confirmadas pela história. Mas, como os profetas que lhe sucederão, ele não abandona o povo, e insiste para que este seja fiel ao projeto libertador de Javé.
13
1-15
 Num momento difícil, o rei Saul é posto à prova. Com medo de perder o povo, ele ultrapassa suas funções, usurpando uma que era própria de Samuel; com isso, desobedece àquele que intercedia pelo povo diante de Javé (10,8; 12,23). O grande perigo de um poder político é ultrapassar suas funções e se absolutizar, pretendendo dar a última palavra sobre a vida e o destino do povo. A função da política é servir ao bem de todo o povo; ela se corrompe quando acumula poderes para oprimir o povo e servir apenas uma classe privilegiada.
16-23
Os filisteus dominavam a tecnologia do ferro, e isso lhes garantia a supremacia sobre Israel. A situação era crítica, pois Israel dependia dos filisteus para a fabricação e manutenção dos instrumentos agrícolas. No campo bélico, os filisteus boicotavam completamente os povos  vizinhos na fabricação de armas. é nesse difícil contexto que Israel busca um novo regime político para preservar a sua autonomia.
14
1-52
Mas uma vez, Saul toma decisões arbitrárias que provocam desânimo, ao invés de estimular a confiança. Agindo com mais sabedoria e solidariedade, Jônatas consegue lançar pânico entre os inimigos. É ele quem se torna o instrumento da vitória concedida por Deus ao povo.
15
1-35
Saul desobedece à ordem de executar o extermínio total, o ponto mais importante de uma guerra santa. Esse extermínio visava impedir a contaminação religiosa, cultural e política, e o desencadear de guerras que visassem unicamente acumular riquezas. A resposta de Samuel deixa bem claro: "obedecer a Javé vale mais do que oferecer sacrifícios", isto é, a verdadeira fé se manifesta na execução integral do projeto de Deus e não em atos religiosos que o possam comprometer. Por trás da justificativa de Saul (vv. 20-21), o verdadeiro motivo da desobediência era talvez a ambição de acumular riquezas.
16
1-13
As narrativas sobre Saul e Davi misturam diversas tradições, muitas vezes bem diferentes entre si e até contraditórias. A unção de Davi serve de contraste com a rejeição de Saul, e salienta que Deus age segundo critérios humanos (v. 7).
14-23
Cumpre-se o que Samuel havia anunciado em 1Sm 15,28: rejeitado por Deus e abandonado pelo profeta, Saul cai em crises maníaco-depressivas. O serviço de Davi como músico da corte é uma das versões sobre o início de sua relação com Saul. Davi exerce poder sobre Saul através da música, porque "Javé está com ele". (v. 18). 
17
1-58
Outra versão da entrada de Davi para o serviço de Saul. O texto deixa claro a superioridade bélica dos filisteus, bem simbolizada no tamanho e nas armaduras de Golias, que provocam medo e insegurança no povo israelita. Na boca de Davi, porém, manifesta-se a fonte de onde brotam a força e a coragem dos fracos: Javé está do lado deles e os ajuda a se organizar para vencer os poderosos. A confiaça e esperteza de Davi mostram que o grande recurso do povo fraco e oprimido é a criatividade, que desmonta o poder opressor, atingindo-lhe o ponto nevrálgico.
18,1-19,7
Por trás da crescente inimizade entre Saul e Davi, podemos vislumbrar a luta pelo poder entre Judá (davi) e as tribos do Norte (Saul). O poder central (realiza) se torna motivo de inveja, cobiça e competição. A história da amizade entre Jônatas e Davi antecipa o apoio necessário para que Davi chegue a se tornar chefe de todo o povo.
19
8-24
Na trama de perseguição de Saul contra Davi, este episódio ressalta que o profetismo tem a força de desnudar o rei, isto é, fazer com que o poder seja ironizado e submetido à sua real condição. O profeta, como defensor da consciência de um povo, sempre colocará um limite para o exercício de qualquer autoridade.
20.1-21,1
A amizade entre Jônatas e Davi é um exemplo de fraternidade (v.17), porque mostra que as relações humanas estão acima  da competição pelo poder.
21
2-16
Davi começa aque sua vida de fugitivo, e precisa recorrer à proteção de Deus ("pães sagrados"), à sua própria força ("espada") e, sobretudo, à própria astúcia.
22
1-5
Começa uma nova fase na vida de Davi. Perseguido e forçado a abandonar o contato com a elite, ele se torna pólo de atração que reúne s marginalizados pelo sistema. A voz do profeta mostra que Davi não deve ficar escondido, mas preparar-se para uma nova ação.
6-23
Com medo de perder o poder, Saul começa a agir arbitrariamente: vê todos como conspiradores e inimigos, incita à traição, não aceita a defesa do acusado, massacra toda uma população pela suposta culpa de uma só pessoa. Quando o poder passa a ser usado em proveito pessoal e não a serviço do povo, começa a gerar descontentamento e, para se manter, lança mão da arbitrariedade e tirania.
23
1-28
Três grupos começam a aparecer com clareza: o de Saul, preocupado em conter  o movimento do seu rival; o de Davi, comprometido com a defesa das povoações atacadas por filisteus; e o grupo dos filisteus, que exerce contínua pressão sobre os território as israelitas. Pouco a pouco se delineiam a derrota de Saul e o triunfo de Davi.
24
1-23
Davi poderia matar Saul e usurpar o poder. A história, porém, mostra que ele não chegou ao poder por essa via, e sem pelo reconhecimento progressivo das tribos (cf. 2Sm 2;5).
25
1-44
Embora nascida em ambiente patriarcal, a Bíblia conserva relatos que mostram o quanto era importante a presença e o discernimento das mulheres. Abigail é um exemplo: enquanto o marido rejeita grosseiramente qualquer tipo de ligação com o movimento de Davi, considerando-o marginal, ela percebe a importância e grandeza desse grupo marginalizado e procura aliar-se com ele.
26
Esta narrativa tem o mesmo sentido que a de 24,1-23; cf. nota.
27,1-28,2
Entretanto em aparente aliança com os filisteus, Davi consegue várias coisas: a escapar de Saul, desestabilizar a zona rural dos filisteus e conquistar a simpatia dos camponeses de Judá. Pouco a pouco, vai se delineando a ascensão de Davi ao poder
28
3-25
O texto relata mais uma vez como Saul foi rejeitado e por fim substituído por Davi. Samuel repete o que já dissera quando em vida: o discernimento da história pertence ao mundo dos vivos.
29
1-11
O apelativo "hebreus" provavelmente se refere a um  grupo social chamado hapiru. Inicialmente, era um grupo formado de guerreiros mercenários que servia às cidades-estado e, ao mesmo tempo, estava interessado em desestabilizá-las. Mais tarde, esse apelativo se estendeu a todos os descendentes com o sistema em vigor (cf. 1Sm 22,2). A estratégia de Davi talvez consistisse em abalar o sistema, agindo por dentro dele.
30
1-31
Novo grande trunfo de Davi para ganhar a simpatia popular, é a sua capacidade de distribuir igualitariamente os despojos conseguidos. Assim, ele vai fazendo que o povo, pouco a pouco, tenha a sensação de estar conquistando a própria liberdade.
31
1-13
O primeiro livro de Samuel termina de modo sombrio: o povo é derrotado, o rei se suicida e os filisteus se apoderam da região mais fértil, isolando as tribos.

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