quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Neemias

1,1-2,10
Da mesma forma que Moisés no Egito, Neemias ocupa posição privilegiada na corte persa, pois goza de atenção pessoa do rei. Todavia, ao saber da situação crítica do seu povo, ele se solidariza interna e externamente, renunciando a uma situação cômoda para lutar em favor dos seus compatriotas. O texto recorda o Êxodo (cf. nota em Ex 2,11-22). Neemias faz uma súplica ao Deus que age na história para libertar o povo. É esse Deus que "com grande poder e mão forte" (1,10) fará o rei permitir que Neemias retorne para junto dos seus.
A missão de Neemias, à primeira vista, é apenas a reconstrução da muralha. Essa reconstrução, porém, visa diretamente a dar segurança à cidade e tornar possível uma organização do grupo judaico. Como o livro deixará claro, a missão de Neemias tinha objetivo político e social: reunir os judeus e dar-lhes uma organização centralizada em Jerusalém.
A reação de Sanabalat e Tobias (2,10) mostra que eles perceberam o alcance da missão de Neemias. Sanabalat era fiscal do império na Samaria; Tobias, governador de Amon, era judeu que bajulava o rei persa, a fim de conseguir os próprios interesses. Os dois, junto com Gesem, chefe dos povos árabes do sul (2,19), temem que os judeus se organizem, sob a chefia de Neeemias, escapando assim ao controle deles e formando território independente.
2
11-20
Neemias é cauteloso e sagaz. Não conta a ninguém o que pretende realizar, certamente para não ser boicotado pelas autoridades, nem se chocar com o descrédito do povo. Primeiro, sonda pessoalmente o terreno, para tomar conhecimento de toda a situação. Daí, parte para o ato de  conscientizar, fornecendo às pessoas um espelho completo de condição em que elas próprias vivem. Antes de alguém dizer que a empresa é impossível, ele apresenta suas credenciais: Deus está do seu lado e já fez que o rei concordasse. Agindo assim, Neemias consegue o empenho de todos. Como reação, as autoridades (vv. 19-20) buscam intimidar o povo, acusando-o de subversão. O que elas temem, na realidade, é perder o domínio sobre os judeus. Neemias deixa claro que sua intenção é reorganizar o povo, segundo o projeto de Javé. Mostra também que Sanabalat, Tobias e Gosem perderão completamente o controle sobre os judeus.
3
1-32
Temos aqui um documento, provavelmente tirado dos arquivos do Templo. Ele nos informa sobre a topografia de Jerusalém e sobre a geografia política da província, formada por Jerusalém, Bet-Acarem, Masfa, Betsur e Ceila. O pessoal importante, que se recusa a trabalhar (v. 5), tem provavelmente interesses em comum com os adversários, dos quais a seguir se falará. A reconstrução das muralhas é obra importante, que protegerá a cidade contra ataques inimigos.
3,33-4,17
Neemias encontra forte oposição das autoridades, que atá o momento controlavam a região. Estas, inicialmente, fazem caçoadas para desanimar os trabalhadores; depois, vendo que a construção prossegue, ameaçam passar à ação direta (4,5). Desse modo, ao trabalho de reconstrução, junta-se resistência tenaz.
5
1-5
Os escritos político encontrados por Neemias ocultam, de fato, uma problemática social: seus opositores enriquecem explorando o povo. já sobrecarregados pelos tributos que deve pagar no estrangeiro, e  que se vê cada vez mais empurrado para a pobreza e a miséria. Primeiro, é forçado a penhorar a produção, depois, também as propriedades; e finalmente, têm que vender os próprios filhos como escravos. O pior de tudo é que essa condição da maioria é provocada por minoria privilegiada, que pertence ao mesmo povo explorado.
A situação dos judeus após o exílio mostra, de modo bastante drástico, a formação de classes sociais: o centro político e econômico se encontra no estrangeiro; e o povo, na sua totalidade, tende cada vez mais a se empobrecer, encaminhando-se a passos largos para se tornar mão-de-obra escrava.
6-13
Chegando ao extremo suportável, o povo só precisa de líder que o ame e seja capaz de organizá-lo. Neemias é o líder que fica indignado com a situação e,a partir disso, toma providências, Primeiro, vai direto aos opressores e os desmascara. Depois reúne o povo e denuncia publicamente o crime que aqueles estão cometendo: vender seus irmãos como escravos. Não há justificativa possível, pois a população mesma está ai para testemunhar. Neemias apela para o que há de mais sagrado: o temor de Deus, ao qual pertence o povo que os exploradores estão vendendo. A seguir, apresentando sua própria atitude como exemplo, propõe anistia geral. Os opressores não têm outra saída, a não ser aceitar a proposta. Caso contrário, seriam sacudidos e despojados, já que "o povo não teme a morte quando os chefes se arrogam o direito sobre a vida" (Lao-Tse).
14-19
Neemias ´´e o modelo de governador, que não usa do cargo para explorar o povo. O texto não deixa claro quem mé que sustentava os gastos do governo. 
6
1-19
Os inimigos políticos de Neemias voltam à carga. Desta vez, prepara ciladas, recorrem a intimidação, manipulam profetas, escrevem ameaças. Se Neemias tivesse aceito o conselho de Semaías e o refúgio no santuário, teria caído no descrédito e na difamação, porque, além de ser proibido a leigo entrar no santuário, tal gesto seria sinal de covardia.
Relacionado com a aristocracia e os sacerdotes de Jerusalém, Tobias, governador de Amon, goza de muita influência entre os judeus. Seus descendentes formaram uma família que sempre esteve ao lado do poder estrangeiro, e isso lhe garantia o controle do comércio na região. 
7
1-3
A reconstrução da muralha de Jerusalém possibilitava espaço e condições para organizar política e socialmente a comunidade judaica, independentemente da influência das outras províncias. Tratasse de situação frágil, pois Tobias, governador de Amon, tinha muitos aliados dentro de Jerusalém, que poderiam facilmente provocar dissidências e sabotagens. Daí as medida das de segurança para a cidade, tanto nas muralhas como nas casas. Toda busca de nova organização do povo deve ser protegida e assegurada contra ataques externos e esvaziamento interno.
4-72a
Quando os repatriados voltaram do exílio, encontraram Jerusalém arruinada e se fixaram em pequenas aldeias, perto dos campos que cultivavam. A partir de critérios genealógicos, Neemias redistribui a população, a fim de repovoar Jerusalém, tornando-a centro da comunidade judaica. Cf. também nota em Esd 2,1-70.
7,72b-8,12
No primeiro dia do sétimo mês de um ano situado na segunda metade do séc. V a.C., nasce o fenômeno político-religioso chamado judaísmo. O acontecimento marcante é o livro da Lei,  certamente o núcleo do atual Pentateuco. Tal livro é promulgado publicamente como lei que regerá a vida política, social e religiosa da comunidade. Daí por diante e até nossos dias, o judaísmo foi pouco a pouco se tornando religião do livro, que acabou por substituir completamente o Templo e os sacrifícios.
A comunidade nasce quando todos ouvem a palavra de Deus, que precisa ser traduzida (esclarecida no seu significado original) e explicada (aplicada à situação concreta da comunidade), para que todos compreendam. Essa palavra, que ensina a conquistar a liberdade e a vida, gera sempre novo comportamento,  que produz partilha, comunhão e alegria (refeição). O centro vital da comunidade é a compreensão da Palavra,  que leva a comunidade a praticar a justiça da qual surge a vida para todos.
8
13-18
Sobre a festa das Tendas, cf. nota em Dt 16, 1-17; A recomendação do tempo de Josué (v. 17) parece indicar que a comunidade judaica revive o tempo em que as tribos se reuniram para construir uma sociedade justa e fraterna.
9
1-37
Esta celebração penitencial foi feita provavelmente após as medidas tomadas por Esdras sobre os casamentos mistos. O texto, portanto, viria logo após Esd 10,44. Os vv. 36,37, porém, tornam mais ampla a situação.
Os vv. 5-37 são um dos textos penitenciais mais completos e belos do Antigo Testamento. Temos aií uma revisão de toda a história do povo, estruturada segundo a visão dialética que aparece na história, desde a conquista da terra até o exílio na Babilônia: pecado e castigo, conversão e graça (cf. Introdução ao livro dos Juízes). O centro da celebração penitencial é o reconhecimento da verdade, e isso implica em declarar que Deus é inocente e em reconhecer que a desgraça provém da infidelidade do povo (cf. notas em Sl 50 e 51). Toda celebração penitencial, portanto, é momento de conversão e de volta ao projeto de Deus, porque só em Deus é possível encontrar liberdade e vida. Se o povo de Deus não confessa publicamente seus pecados, absolvendo Deus como único inocente, ele acaba declarando que Deus é cúmplice de seus pecados.
10
1-40
A confissão de fé e o compromisso com Deus têm consequências sociais bem determinadas: pôr em prática os mandamentos (v. 30), manter a identidade do povo (v. 31), reservar o sábado para o culto e o descanso (v. 32), dar oportunidade para os pobres se sustentem e refaçam ou que defendem os interesses do povo (vv. 33-40). O Templo merece especial atenção (v. 40), porque, na época, é o único ponto de união na vida social da comunidade.
11
1-36
Em base à lista dos primeiros repatriados, procura-se redistribuir a população judaica, de modo que Jerusalém seja repovoada. O recurso ao sorteio e o v. 2 deixam claro que, nesse tempo, era mais fácil viver no interior do que na capital. Os vv. 20-36 mostram que os judeus se espalharam bastante para o sul, ao Negueb.
12
1-26
Temos aqui uma tentativa de reunir documentos diferentes para dar uma visão conjunta das famílias de levitas, desde a volta do exílio até 405 a.C. Os vv. 10-11, com a lista dos sumos sacerdotes de 520 a 405 a.C., são provavelmente acréscimo.
27-43
A obre de Neemias é coroada com festa solene. O autor ressalta a presença dos levitas vindos de todas as cidades e introduz Esdras na cerimônia. De fato, essa procissão será organizada mais tarde, em períodos regulares, para festejar a reconstrução da cidade.
44-47
O autor considera Zorobabel e Neemias como pioneiros de uma época ideal, em que os direitos e desigualdades eram respeitados e a Lei observada à risca. Mais uma vez, o autor salienta a função dos levitas, frente às pretensões exclusivistas dos sacerdotes. Em geral, estes eram mais favoráveis à política que os governadores persas exerciam nas regiões vizinhas.
13
1-14
A lei de Dt 23,3-6 visava a proteger o povo contra influências estrangeiras que poderiam desfigurar o projeto de uma sociedade justa e fraterna. De modo algum significava separatismo racial ou nacional (cf. Dt 23, 7-9). Essa lei é retomada a propósito da atitude sacerdote Eliasib, que alojou dentro do Templo até o governador Tobias, inimigo declarado da reorganização política e social da comunidade judaica.
Os vv. 10-14 mostram que Tobias não só ficou hospedado nas dependências do Templo, mas intrometeu-se na organização da comunidade judaica. Tirando o sustento dos levitas e sacerdotes (v. 5), Tobias mudou o núcleo unificador da comunidade, que era o culto (sacerdotes)e a pregação (levitas).
15-22
Conforme a legislação antiga (cf. Dt 5,12-15), o sábado dia do repouso para todos. Após o exílio, ele adquire também sentido cultual (cf. Ex 20, 8-11). Como de Javé e como dia do homem, o sábado existe para celebrar a liberdade e a vida, a fim de gerar uma sociedade justa e fraterna durante a semana. A ganância de lucro perverte o dia de Deus e do homem, produzindo uma sociedade construída sobre a escravidão e a opressão.
23-31
À primeira vista, Neemias parece tomar atitude mais dura do que Esdras (cf. nota em Esd 9, 1-10,17). Note-se, porém, que o primeiro não exige a separação das mulheres nem dos filhos nascidos de casamento entre judeus e estrangeiros. Relembrando a figura de Salomão, Neemias deixa claro que a proibição de casamentos com estrangeiros não visa à pureza da raça. Quer somente preservar o projeto social e a identidade cultural do povo. Se no tempo de Salomão o casamento significava aliança com países estrangeiros (cf. nota em 1Rs 11, 1-13), no pós-exílio a situação é mais crítica ainda: a língua e os costumes estrangeiros podiam dissolver completamente a existência da comunidade judaica. Por outro lado, o casamento com estrangeiros é visto como "profanação" contra o sacerdócio e contra "a aliança dos sacerdotes e levitas". Essa aliança é provavelmente o eixo central de três livros: Crônicas, Esdras e Neemias. Trata-se talvez de compromisso que os sacerdotes e levitas assumiram de organizar a comunidade judaica e segundo o culto a Javé (sacerdócio) e as tradições dos antepassados, conservadas principalmente no livro do Deuteronômio (levitismo; cf. Ne 13, 1-2).

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