domingo, 17 de outubro de 2010

A ESPIRITUALIDADE DO CONFLITO



          Na sala de catequese do centro pastoral, Vitória estava sozinha, guardando as suas coisas. Estava decidida a deixar não só a coordenação como também o trabalho de catequista, após 26 anos de dedicação à comunidade. Nesse tempo todo, havia passado por muitas dificuldades, mas nenhuma como aquela. O novo padre da paróquia chamou-a e simplesmente lhe disse que os seus serviços como coordenadora já não era necessários: ele havia escolhido uma pessoa para coordenar a catequese na paróquia. Era horrível sentir-se desacordada! O ocorrido contrariava tudo aquilo em que ela acreditava sobre a Igreja, sobre comunidade: "Por isso vem, entra na roda com a gente também, você é muito importante...".
          Entre lágrimas, Vitória remexia as lembrancinhas, fotografias, apostilas de formação, guardadas na caixa de papelão. Estaria ela ultrapassada? Não se encaixava mais nos moldes do novo trabalho pastoral, planejado pelo padre? Mas isso não poderia ser resolvido de outro modo? Vitória olhava as fotos do tempo em que começara a ser catequista, na época  das comunidades eclesiais de base, quando estava na paróquia o saudoso monsenhor Garcia. As calças de boca de sino, os rostos felizes, os encontros... Outra foto: um encontro de formação em 1983, sobre o novo documento Catequese Renovada - quanta mudança! Lembrancinhas do chá de bebê do seu primeiro filho: teve de se afastar da catequese por uns tempos - foi tão doído! Cartazes da Campanha da Fraternidade de 1992, fotos da passeata feita com os jovens da crisma, trabalhos de catequizandos do final dos anos 90, o santinho do falecimento da sua mãe, lembranças dos encontros e das celebrações do Projeto Rumo ao Novo Milênio...
          Em meio às recordações, Vitória encontrou uma oração, que ganhou das irmãs carmelitas no dia em que visitou o Carmelo com os catequizandos, por ocasião do mês vocacional. Era a oração de santa Teresa d'Ávila, que dizia:
                    Nada te pertube
                    Nada te espante
                    Tudo passa
                    Deus não muda
                    A paciência tudo alcança
                    Quem tem Deus em sua vida
                    Nada lhe falta
                    Só Deus basta
          "Quem tem Deus em sua vida..." Vitória desatou a chorar: "Como pude pensar em abandonar Deus? Como pude pensar em deixar a catequese? Esta caixa é sacramento da presença de Deus na minha vida. eu estou nas mãos dele. Ele vai fazer superar mais este momento de dúvida e de dor".
          Disposta a procurar o padre para uma conversa franca, Vitória deixou as suas coisas na sala de catequese e foi para a igreja rezar.

          No meio do caminho tinha uma pedra...

          Os Atos dos Apóstolos nos mostram que o grupo dos discípulos de Jesus era chamado, no começo, de " o Caminho" (9,2). Esse "Caminho" de discipulado esteve exposto, desde o início, ao conflito e à perseguição. A mensagem cristã - fermento de renovação não só para o Judaísmo, mas para todo o mundo no século I - era vista por muita gente como ameaça a uma série de estruturas, privilégios e legalismos existentes. Isso porque o Espírito Santo que move o cristão não combina com a sede de poder.
          Seguimento de Jesus e apego ao poder andaram sempre se esbarrando na história.
          O anúncio da vontade de Deus exige a denúncia do que está errado, o que envolve incomodar muita gente que já se instalou confortavelmete na injustiça e no pecado. Por isso, o sofrimento, o abandono e a perseguição são o cálice a ser bebido por todo profeta.
          Foi assim com os profetas de Israel, foi assim com Jesus, com os apóstolos, com os mártires de todos os tempos. Muitas vezes, as forças que sufocam o entusiasmo do cristão não vêm de fora da comunidade, mas de dentro, das disputas por grandeza e poder que tanta divisão e tristeza semeiam entre os seguidores de Cristo. As perseguições que se verificam no interior da própria comunidade são as mais dolorosas, poque geralmente acarretam ao discípulo isolamento e solidão.
          Todo momento de conflito deve ser oportunidade de reavaliação para ambos os lados envolvidos. O desejo de poder cega a autocrítica e estereliza o diálago. Se há desavenças, é preciso reconhecer com humildade os problemas que as causam. Ser humilde é deitar no chão (húmus) da própria vida e olhar-se como se é.
          O fim do conflito espera um gesto de sincera penitência: que ambos os lados rasguem o coração, conversem francamente, reconheçam seus erros e exageros, se aceitem mutuamente e estejam dispostos a começar uma vida nova. Deus nos ama assim; por que não deveríamos também amar e perdoar generosamente o nosso irmão?
          Entretanto, sabemos que há perseguições muito maiores a que os cristãos podem estar expostos, fora e dentro da Igreja.As vezes, um dos lados é bem mais forte e faz quetão de exibir suas garras. Todavia, ninguêm é mais forte que Deus:
                              "Quem nos separará
                              do amor de Cristo? Se
                              Deus é por nós, quem
                                 será contra nós?"
                                  (Rm 8,31.35)
          Deus é sempre mais: maior que os inimigos, maior que o pecado, maior que o medo, maior que o abandono, maior que todas as pedras no caminho dos cristãos.
          Ele, sim é o Rochedo no qual a casa da nossa vida deve estar construida e bem alicerçada.
          Momentos de dúvida e de angústia não são propícios para a tomada de decisões importantes. Somente quando, após muita oração, nos reencontramos sob o cuidado de Deus e vemos o caminho que ele abriu para nós - mesmo em meio ao"vale tenebroso" - é que podemos dar os passos na direção da mudança. E nenhum mal temeremos.

Revista ECOANDO formação Interativa com Catequistas - ano VII - nº 28.

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