sábado, 3 de setembro de 2016

Juízes

1
1-36
Após a descrição fortemente idealizada do livro de Josué, temos aqui uma apresentação mais realista do processo: a luta contra as cidades-estados cananéias foi levada a cabo pouco a pouco, graças ao esforço solidário dos diversos grupos.
2
1-5
O projeto de criar uma sociedade é um processo histórico, e não se realiza de uma hora para outra. O grande risco é a coexistência com grupos que sustentam um projeto social injusto (os cananeus), o que constitui contínua armadilha e tentação de voltar para trás.
2,6-3,6
O texto fornece a chave para se compreender a história apresentada nos livros de Josué, Juízes, Samuel e Reis. O importante para levar a frente um projeto é manter a memória ativa ou consciência histórica, adquirida através da resistência e da luta. A geração que luta mantém viva essa consciência (vv. 6-10a). A nova geração, porém, quebra essa memória e ameça fazer o projeto voltar atrás (v. 10b). O resultado é um vai e vaivém na história, entre a fidelidade a Javé e seu projeto, e o culto aos ídolos, que corrompe a sociedade.
Os vv. 11-16 apresentam a dinâmica que marca o destino histórico de um povo:
a) Pecado = alienação da consciência histórica: o povo abandona Javé, o Deus que produz liberdade e vida, para servir os ídolos que corrompem, produzindo um sistema social injusto (vv. 11-13).
a) Castigo = perda da liberdade e da vida: servindo aos ídolos da escravidão e da morte, o povo alienado perde a liberdade e a vida, que tinham sido duramente conquistadas (vv. 14-15a).
c) Conversão = volta à consciência histórica: no extremo limite do sofrimento, o povo volta à consciência histórica, e clama a Javé (v. 15b; 3, 9.15).
d) Graça = libertação: Javé responde ao clamor, fazendo surgir líderes (juízes) que organizam o povo e o ajudam a reconquistar a liberdade e a vida (v. 16).
Mas a história continua, e as novas gerações parecem estar sempre voltando à alienação da consciência, à perda da memória (vv. 17-19). à primeira vista, teríamos a tentação de dizer que a história é um círculo vicioso, que volta e termina sempre ao mesmo lugar. O autor, porém, mostra que tal círculo pode ser quebrado: para isso, é necessário que cada geração assine o projeto de Javé e continue a luta dos antepassados. O desafio é extinguir completamente a idolatria, que impede a liberdade e a vida (2,20-3,6).
3,7-16,31
Costuma-se distinguir os juízes entre maiores e menores, de acordo com o tamanho da notícia que se tem sobre eles. Seguindo esse critério, os juízes maiores são: Otoniel, Aod, Débora e Barac, Gedeão, Jefté e Sansão. Os menores são: Samgar, Tola, Jair, Abesã, Elon e Abdon. É difícil distinguir a função própria de cada um deles. O texto leva a pensar que os juízes maiores eram líderes que, em circunstâncias difíceis, organizavam uma ou várias tribos para fazer frente aos ataques de cidades-estado cananéias ou de inimigos vizinhos. A função desses juízes maiores era defender o sistema tribal em situações de emergência. Os juízes menores, ao que parece, eram chefes regulares de tribos, e sua função era principalmente administrar a justiça. O texto, porém, parece confundir essa distinção, apresentando juízes maiores também como administradores da justiça (Débora, Jefté) e juízes menores como guerreiros (Samgar, Tola).
Quando um povo procura realizar historicamente um ideal de justiça e fraternidade, as lideranças aparecem no momento certo para organizar o povo e liderá-lo em situações difíceis. O livro de Samuel, porém, mostrará que isso não basta: quando os inimigos são superorganizados, também o povo tem necessidade de uma organização permanente, que lhe assegure manter-se no meio das grandes potências.
3,7-11
Baal e Aserá eram a divindade masculina e feminina da religião cananéia. Serviam de cimento ideológico do sistema das cidades-estado, justificando a política opressora e exploradora dos reis. O juiz é impulsionado pelo "espírito de Javé"; sua ação se inspira no projeto libertador de Javé, que atende ao clamor do povo.
12-31
Para assegurar sua própria independência e espaço vital, o povo tem que enfrentar os poderosos. Nessa luta desigual, é preciso recorrer à inteligência, esperteza e coragem para derrotar o opressor.
4
1-24
Este episódio, também apresentado em poesia (cap. 5), foi decisivo para o sistema das doze tribos de Israel: a vitória sobre os reis cananeus, situados na faixa central, favoreceu a união entre as tribos do sul e do norte. O texto, porém, está interessado nas principais personagens, do que na batalha em si. Contrapõe duas mulheres a dois homens: Débora, profetisa e juíza decidida e corajosa, contra Barac, guerreiro indeciso e sem coragem. Sísara, general fugitivo, contra Jael, mulher corajosa, que consegue liquidar o principal inimigo de Israel.
5
1-31
Este é um dos hinos mais antigos da Bíblia, composto logo depois dos acontecimentos. Trata-se de uma versão poética sobre os mesmos fatos apresentados no capítulo 4. Como se trata de uma batalha decisiva para o projeto das tribos, ela é apresentada como guerra santa: o autor convida ironicamente os reis e governadores cananeus derrotados a ouvir o que Javé realizou (vv. 2-5). Descreve-se o resultado da vitória: as caravanas de mercadores, que levavam objetos de luxo e armas para as cidades-estado, tiveram o seu caminho cortado (v. 6). Sem poder mais explorar os camponeses e suas terras, tais cidades não conseguiram oferecer sacrifícios e seus deuses por falta de animais, e seus armazéns ficaram vazios por falta de trigo (v. 8a). Enquanto isso, os camponeses vitoriosos conseguiram livrar-se dos tributos e puderam gozar de fartura com os despojos da guerra e das caravanas (v. 7). A vitória foi conseguida sem que Israel possuísse armas de guerra como os cananeus (escudo, lança, carros): foi a vitória do projeto de Javé (v. 8b).
As tribos foram convocadas, sob a liderança de Débora. Dependendo da colaboração ou não, as tribos são elogiadas ou criticadas (vv. 9-18.23). A estratégia decisiva para a vitória foi o combate na planície, onde a cheia do rio Quison tornou impossível a movimentação dos carros cananeus (vv. 19-22). A ação de Jael mostra a importância da mulher nessa luta: é ela quem mata o grande general cananeu (vv. 24-27). ) cântico se fecha de forma fúnebre, com a mãe do opressor esperanto inutilmente pela volta do filho vitorioso (vv. 28-30). O v. 31 encerra o cântico com o desejo de que o projeto de Javé seja sempre triunfante.
6
1-6
Na busca de implantar um novo sistema político, econômico e religioso, Israel teve que enfrentar novos inimigos (cf. nota em 2, 1-5). Estes, vindos do leste e do sul, se apoderam de toda a produção agrícola e pecuária, deixando o povo na miséria.
7-10
O profeta analista a causa da situação: o povo abandonou o projeto de Javé. A infidelidade no campo religioso provoca o enfraquecimento geral do sistema, que se enche de brechas, permitindo a entrada de grupos não comprometidos com o projeto, provocando assim uma volta da exploração e opressão.
11-24.36-40
Gedeão é o líder que tentará reorganizar o povo. A primeira coisa a fazer será voltar ao projeto do Deus libertador (v. 13) e colocar-se a serviço dele. O sinal confirma a missão (cf. nota em Ex 4, 1-9).
25-32
Para uma volta ao projeto de Javé, é necessário romper a religião de Baal, que cimenta o sistema opressor das cidades-estado.
33-35
Retomando o projeto de Javé, Gedeão consegue reunir várias tribos para enfrentar o inimigo externo.
7
1-8
Gedeão lidera um grupo popular para combater os madianitas. Não se trata de um exército profossional, e sim de um grupo minoritário, mas cheio de coragem (v. 3).

7,9-8,3
O combate contra os madianitas apresenta um estratagema de guerrilha, que é o concurso popular contra exércitos organizados. A tenda simboliza a vida dos medianitas nômades, e o pão de cevada lembra a vida agrícola dos israelitas: o sonho anuncia a vitória dos israelitas sobre os medianitas (vv. 13-14). O texto de 7,23-8,3 parece refletir uma tradição diferente, que foi unida aqui.A narrativa de 7,22 continua em 8,4.
8
4-21
Os habitantes de Sucot e Fanuel não se solidarizam com Gedeão, pois não acreditam
 no sucesso da campanha e temem a represália dos madianitas. A guerrilha depende da solidariedade e apoio popular: se o povo não acredita no sucesso de uma ação revolucionária, esta dificilmente conseguirá se manter.
22-35
As tribos tinham feito longa luta para superar o sistema das cidades-estado, onde os reis se perpetuavam no poder através de sucessão dinástica (de pai para filho). A proposta feita a Gedeão (v. 22) significava uma volta ao sistema que se combatia. Na resposta de Gedeão (v. 23), temos o ideal defendido pelas tribos: a única autoridade sobre o povo é Javé, e isso não permite constituir poderes absolutos, que sempre acabam por explorar e oprimir o povo. Sobre os vv. 33-35, cf. nota em 2,6-3,6.
9
1-6
O texto é irônico e descreve o processo de ascensão ao poder. O discurso ideológico procura convencer o povo de que o poder centralizado é melhor do que o poder participado (v. 2). O poder se constitui a partir da entrega simbólica da liberdade do povo através da oferta em dinheiro (v. 4a). O dinheiro é usado imediatamente para eliminar os concorrentes e estabelecer uma autoridade única (vv. 4b-6).
7-21
Os vv. 8-15 reproduzem uma fábula particular, que apresenta a mais severa crítica ao poder político: somente aquele que nada produz é que se presta para exercer o poder, e a segurança que ele oferece não passa de armadilha contra a liberdade do povo. Os vv. 16-20 aplicam essa fábula à situação, mostrando que o povo deverá arcar com as consequências de suas próprias decisões.
22-25.42-49
Os "juízes", que lutam com desprendimento em favor do povo, são guiados pelo "espírito de Javé" ou pelo "anjo de Javé" (3,10,15; 4,6; 6,12; 11,9; 13,25). E quem é movido pela ganância do poder e oprime o povo, torna-se presa do "espírito mau", que provoca divisão e discórdia, desencadeando uma sequência crescente de morte.
26-41
Este episódio, inserido aqui posteriormente, mostra uma tentativa de subversão contra a prepotência de Abimelec. O texto nota que essa tentativa se frustrou porque foi feita com antigos aliados de Abimelec e sem planejamento sério; tornou-se uma aventura pessoal, que acabou jogando o povo nas mãos do inimigo.
50-57
Acontece o que Joatão tinha previsto (cf. nota em 9,7-21). De novo, uma mulher é quem põe fim à carreira do opressor (cf. nota em 4,1-24).
10
1-5
Tola e Jair são "juízes menores" (cf. nota em 3, 7-16,31).
6-18
Repete-se aqui o esquema que encontramos anteriormente (cf. nota em 2,6-3,6). O texto tem caráter de liturgia penitencial: reconhecer os erros repetidos produz conscientização mais profunda.
11
1-11
Muitas vezes, aqueles que são desprezados e marginalizados tornam-se, dentro do projeto de Deus, instrumentos de libertação. Uma estrutura de sociedade que marginaliza  o povo em benefício de uma classe dominante, acaba em situações críticas, que só os marginalizados por essa mesma estrutura são capazes de resolver. O Novo Testamento mostrará que a nova construção se apóia justamente sobre a pedra rejeitada (cf. Mt 21,42).
12-28
O texto é confuso. Pelo que parece, tenta resolver pacificamente - dentro de celebrações litúrgicas - alguns problemas sobre a posse de territórios situados na Transjordânia.
29-40
O texto é advertência contra promessas que não estejam de acordo com o projeto de Javé, que é projeto de vida e não de morte.
12
1-7
A tribo de Efraim era poderosa e arrogante, sempre alerta para evitar que nenhuma outra pudesse sobressair (cf. 8,1-3). Chibôlet significa espiga de trigo.
8-15
Abesã, Elon e Abdon são "juízes menores" (cf. nota em 3,7-16,31).
13,1-16,31
Os filisteus eram um grupo provindo do Mediterrâneo e que se fixou na costa sul de Canaã, por volta de 1.200 a.C. Rapidamente se tornaram perigosos para a sobrevivência do sistema das tribos.
A história de Sansão, a mais longa no livro dos Juízes, salienta de início que Sansão é um instrumento escolhido por Javé para libertar o povo ameaçado pelos filisteus. O resto da história deixa bem claro que Deus é livre para escolher os seus instrumentos, e não se restringe a escolher aqueles que os homens julgam moralmente perfeitos, nem realiza a sua ação através dos meios que nós consideramos os mais apropriados. Notemos bem que a vida de Sansão se encerra num ato heróico:  ao mesmo tempo em que morre, ele tira a vida dos chefes filisteus (16,30), libertando assim o seu povo.
17-18
Estes capítulos, conservando narrativas antigas, procuram dar um panorama de como o culto a Javé se desenvolveu na época de Israel antes da monarquia. Em época mais remotas, o culto era feito em família, e o pai era o sacerdote, ou alguém nomeado por ele. Na falta do pai, a mãe tomava a iniciativa de estabelecer o culto (17,1-6). Depois, essa atividade sacerdotal começou a ser realizada pelos levitas itinerantes, que moravam junto a uma família e exerciam o cargo a troco do próprio sustento (17,7-13). Mais tarde, esses levitas também serviram como foco de união cultural de toda uma tribo (18,19-20). Não havia ainda nenhum santuário central para todas as tribos. A única coisa que se procurava preservar, através dessa religiosidade popular, era a adoração a Javé, o Deus do êxodo. Durante a monarquia, esse culto foi centralizado em Jerusalém.
O cap. 18 preserva também um fato histórico: a migração da tribo de Dã para o norte. Isso aconteceu porque o território onde Dã se havia estabelecido não era favorável, por causa da forte pressão dos filisteus.
19-21
Essas narrativas mostram alguns princípios básicos para se preservar um mínimo de relacionamento e unidade entre as tribos. Destaca-se como dever sagrado a hospitalidade: o retardamento da narrativa (19, 1-9) é justamente para salientar esse aspecto. Os habitantes de Gabaá e os benjaminitas violam esse dever (19,10-30). O cap. 20 mostra como as tribos reagiam com rigor contra  aqueles que violavam essa hospitalidade, talvez o único gesto de solidariedade capaz de manter a sobrevivência num território ainda cheio de inimigos.
O cap. 21 mostra como era necessário preservar a existência de todas as tribos e evitar a todo custo o extermínio de uma delas: nessas circunstâncias, o rigorismo cede lugar à piedade e à compreensão.